Para Carlos Alberto Oliveira:
No sábado passado, na praça de São Benedito, reuniram-se alguns membros do grupo “Nós na Rua”, para repetir uma tradição centenária que o grupo resgatou. A Malhação de Judas.
Para os mais novos devo contar e aos mais velhos relembrar, o que vem a ser a tal da “Malhação de Judas” no sábado de Aleluia. Os Evangelhos nos contam a história dos últimos dias do Cristo na terra, o contato com seus apóstolos e a traição de um deles, de nome Judas, que por trinta dinheiros entregou-o aos Sacerdotes do Templo. A tradição Cristã passou então a não perdoar, contrariando o próprio Cristo, o traidor e, dele passou a se vingar todos os anos, reencenado o enforcamento do infeliz apóstolo.
Tradição Cristã européia, como outras, transplantada pelos portugueses para a colônia brasileira. É de Debret, uma das mais antigas imagens desta tradição que se espalhou pelas ruas das cidades de costa a costa. E explica o pintor do que se trata: “...a parte superior da cena mostra elementos pobres armando o Judas de palha com roupa de homem a que se acrescentou uma máscara com um boné de lã para formar a cabeça; algumas bombas colocadas nas coxas, nos braços e na cabeça serviam para deslocar o boneco no momento oportuno e uma arvore nova fazia as vezes de uma forca. Esses preparativos eram feitos durante a noite, afim de estar tudo pronto pela manhã. O Judas é suspenso pelo pescoço e segura uma bolsa suposta cheia de dinheiro; tem no peito um cartaz quase sempre concebido nestes termos: Eis o retrato de um miserável, supliciado por ter abandonado seu pais e traído seu senhor.”
Aqui em São João da Barra, a tradição é muito antiga, centenária mesmo. Enforca-se o infeliz que ficou pendurado a noite inteira e depois queimam-lhes as roupas, ate que o boneco começa a despencar quando a criançada inicia a pancadaria. Em pequeno me lembro de nós sairmos cada um com um pedaço de pau, correndo e batendo nos restos do boneco flamejante que algum marmanjo laçava e saia arrastando montado em uma bicicleta.
Papai já malhava o Judas e antes dele meu avô. Tive a sorte de encontrar uns versos, escritos por Dona Cocota Simões, para uma malhação de Judas feita pelo seu neto Carlos Alberto com o amigo Odyr, meu pai.
Para quem não conheceu Dona Cocota Simões, ou melhor, Dona Maria das Dores Pavão Simões era uma das mais importantes damas de nossa sociedade, matriarca de preclara família...Mas, as mulheres daqui, mesmo as mais recatadas e importantes, viviam próximo do porto... e no porto, você sabe... portanto não se espantem com a irreverência dos versos, pois sempre foram próprias das mais distintas damas daqui da cidade. Divirtam-se como eu me diverti ao lê-los.
Por outro lado, a malhação do Nós na Rua, vem aos poucos adquirindo o prestigio e a tradição que tinham perdido. As crianças presentes adoram e a cultura do lugar se enriquece com esses hábitos ancestrais, cheios de sabor e poesia, coisas de cidade antiga.
Trouxe os versos de D. Cocota para que todos possam rir.
Lembrança de 31 de março de 1945 em um sábado de Aleluia. Um judeu feito por Senhora, minha filha e o meu neto Carlos Alberto. Fazendo Judas o seu testamento
TESTAMENTO DO JUDAS
Sentindo um pesar profundo
Vou fazer meu testamento,
Porque vou deixar o mundo.
Para D. Nair que eu tenho
Grande consideração
Deixo como uma lembrança,
O meu pobre coração.
E para D. Lindoca
Deixo meu dolmam sebento
Para vestir no noivo
No dia do casamento.
Para Donita que é
Minha amiga verdadeira,
Deixo um culote rasgado
E um bom par de perneiras.
Para D. Cocota eu deixo
Para que todo mundo veja,
Um livro e um rosário
Para rezar na igreja.
E para D. Senhora,
Esquecer a viuvez
Deixo a minha aliança
Para casar outra vez.
Para Antonio Curumba
Como prova de amizade,
Deixo uma franguinha,
Para passear na cidade.
Para D. Nilda Oliveira
Em que tenho muita fé,
Deixo para os dias de chuva,
O meu bonito boné.
Como sou casamenteiro
Deixo para o enxoval
O meu saco de dinheiro.
E para Carlos Alberto,
Porque tem muita vergonha
Deixo como lembrança
Minha cara de cegonha.
E para Odyr Labonde
Por ser muito espevitado,
Deixo como lembrança
Os meus sapatos rasgados
Para Beldo Macedo
Deixo com minha cinura
Meia dúzia dos meus dentes
Para fazer uma dentadura.
Para Sinhozinho Valle
Peço que ninguém se meta,
Deixo como lembrança
Uma gravata borboleta.
Para Mariana Mello
Que tem um gosto esquisito
Como uma lembrança
Eu deixo o meu pirulito
Para minha amiga Edith
De quem vou me despedir
Deixo o meu par de ovos
Para ela se divertir.
E já tendo dado tudo
Ficando com o corpo nu,
Como prova de amizade,
Deixo para Aninha Bongosto o meu cú.
Como despedida do mundo
A Catarina Lamego
Eu deixo saudades infindas
De todo o nosso chamego.
Fim.
Fernando Antônio Lobato